segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
Idun e as maçãs da juventude
- A curiosidade é o que diferencia o homem superior do medíocre - dizia ele a Loki, tentando instruí-lo. - Na verdade, há apenas duas classes dos homens: os despertos e os adormecidos; os primeiros são aqueles que já acordaram do sono bruto da indiferença, no qual os outros ainda estão miseravelmente imersos. Um sono imbecilizante, que os faz crer que a vida se resume à meia dúzia de funções orgânicas, exceto a mais nobre: a de usar seus próprios cérebros para criar algo de belo, que os torne felizes como um deus. E isto - arrematou Odin - somente alguém dotado de curiosidade pode fazer, ou seja, alguém desperto.
Loki, que ainda estava na classe intermediária dos sonâmbulos, começou a sentir um sono que ameaçava transportá-lo de volta ao reino dos adormecidos. Mas foi salvo pela fome - a madrasta comum de todos -, que o obrigou a interromper a prédica de Odin.
- Tudo isso é muito bonito, mas estou com uma fome dos diabos - disse ele que já estava tomando uma coloração esverdeada.
- Muito bem, vamos comer, então - disse o deus, largando no chão o alforje.
Mas esta expressão na boca de Odin era um mero eufemismo, pois seu único alimento era o hidromel, a bebida sagrada dos deuses. Loki, entretanto, que tinha muito pouco de deus, começou a armar uma pequena fogueira. Logo um grande pedaço de carne assava gloriosamente, espalhando pelas redondezas o seu atraente perfume.
Enquanto Loki estava acocorado diante da fogueira, comendo pelo nariz, Odin que estava especialmente inspirado naquele dia, retomara sua lição:
- Diz uma lenda muito antiga, que um dia um jovem encontrou uma caixa velha e, ao abrí-la, viu sair de dentro um gênio poderoso - disse o deus, tomando placidamente seu hidromel. - A criatura, pródiga em em poderes, perguntou-lhe então: "Você tem direito a um único pedido, reles mortal!" Depois de se recuperar do susto, o reles mortal o encarou e disse: "Qualquer um" e o gênio respondeu: "Qualquer um menos a imortalidade!" Então, depois de refletir um pouco o jovem teve uma brilhante idéia: "Já sei!", pensou ele. "Em vez de fazer um pedido que me acrescente algo novo - ou seja, uma nova necessidade - , farei outro que acacabará com quase todas elas!" Voltando o olhar para o gênio, disse-lhe : "Retire já o meu estômago!" Desde então, este jovem felizardo passou a ser o homem mais livre que a terra já conheceu.
Loki, no entanto, não escutou direito a fábula (e, certamente não a teria a aprovado, se a tivesse escutado), ocupado que estava em abanar o fogo, quase apagado por conta de uma ventania inesperada que surgira do nada.
_ Droga! - exlcamou ele, com as bochechas escarlates de tanto assoprar. _ De onde veio a droga deste vento?
Somente então, perceberam que acima das suas cabeças, empoleirada em um alto galho, estava uma imensa águia - na verdade, a maior águia que seus olhos já haviam contemplado. A criatura abanava suas asas, parecendo fazê-lo de propósito.
_ O que pensa que está fazendo, águia idiota?! - gritou Loki, mostrando-lhe o punho.
_ Refrescando-me - disse ela, com uma voz gutural, que nada tinha a ver com o grito estridente da águia.
_ Senhora ave, por que o deboche? - disse Odin, mudando o tom da interpelação.
_ Vocês não querem comer? - disse ela, parando por um instante de abanar seus dois gigantescos leques empenados. - Então, deixem que eu me sirva desta carne saborosa.
Loki, sem ver outro meio de comer aquele dia, acabou por ceder.
_Está bem, mas veja se deixa algo sólido para mim!
_ Naturalmente!....
_ É algo bastante bom!
_ Naturalmente, naturalmente!...
O fogo ardeu outra vez e, dali a alguns instantes, a águia descia de seu poleiro para se refestelar.
_ Hummmmmm! Que delícia de carne! - dizia a águia, engolindo os pedaços aos bocados. _ Meus parabéns, senhor assador...!
Sem dar ouvidos, entretanto, às queixas do esfomeado Loki, a águia devorou tudo, deixando no espetos apenas os ossos do boi.
_ Maldita tratante! - exclamou Loki. - Veja só o que me deixou!
_ Não queria algo bastante sólido? - disse a águia, dando risada e agitando as asas num acesso de hilaridade.
Mas Loki não achou graça nenhuma na piada e, por isto, agarrou um galho fino e comprido que viu caído ao chão e começou a vergastar o lombo da águia.
Contudo, no primeiro golpe, vendo-se maltratada, ergueu vôo imediatamente. Foi então, que Loki descobriu, alterado, que levantara vôo junto, pois suas mãos haviam grudado no galho, como por mágica.
_ O que é isso?! Socorro! - berrou ele até sumir no céu como um pontinho.
Sem dizer nada, a águia desceu, abruptamente, dando um vôo rasante um pouco acima de uma floresta, de tal modo, que sua presa foi se chocando contra os ásperos galhos e os espinhos das árvores.
_ Ai! ... Ui! - gritava o pobre Loki, esbarrando nas árvores em altíssima velocidade. - Pare com isto, por caridade!...
Mas a águia, surda aos apelos, engendrara um novo suplício, retirando Loki todo ensangüentado da floresta e o levando até as águas salgadas do mar, onde mergulhou-o, sem contudo nunca cessar de voar.
_ Um salzinho ajuda a sarar as feridas! - disse ela, com um grande riso.
Quando o desgraçado saiu de dentro da água, estava mais morto que vivo e, por isto, a águia resolveu abrir o jogo de uma vez:
_ Muito bem, agora preste atenção! - disse ela, subindo às alturas até quase alcançar o próprio sol. - Eu não sou uma águia, coisa nenhuma, mas gigante Thiassi, disfarçado. Se quiser escapar de minhas garras, terá de me fazer uma promessa!
Loki, que já provara dos arranhões da floresta e da água salobra do mar, agora, estava às voltas com um calor sufocante, que o cozia em pleno ar.
_ Está bem, está bem, eu prometo, seja lá o que for!
_ Bela frase...! - disse o gigante alado. - Você fará então o seguinte: trará até mim a bela Idun e suas maravilhosas maçãs mágicas!
Thiassi referia-se à deusa da juventude, de cujo pomar mágico brotava maçãs rejuvenecedoras. Desde que o mundo fora criado que os gigantes e os anões haviam ambicionado provar destes frutos, mas eles eram propriedade exclusiva dos deuses.
_ Enfim, chegou a hora de dividir a imortalidade entre todos! - exclamou Thiassi, lambendo-se todos e se imaginando jovem e esbelto outra vez.
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Loki foi libertado e tratou de procurar imediatamente a bela Idun.
_ Loki, você por aqui? - disse ela, um jovem loira, que tinha o olhar manso e o corpo esbelto das corças.
A deusa estava justamente colhendo as maçãs em seu perfumado pomar. Grandes frutos, vermelhos com grandes rubis, resplendiam dentro de seu cesto dourado. Podia-se imaginar o gosto sumarento de sua polpa amarela e umida na boca, mesmo antes que eles fossem provados.
_ Você já não comeu a sua maçã recentemente? - disse ela, intrigada. - Lembre-se de que a próxima refeição ainda está longe.
- Oh, pouco importa! - disse ele, afetando um ar de desprezo. - Afinal, quem vai querer estas maçãs horrorosas, quando tem ao alcance outas infinitamente mais saborosas e rejuvenecedoras?
_ O que está dizendo? - disse Idun, tornando-se séria.
_ Isto mesmo que você ouviu. - retrucou Loki, enfático. - Descobri um outro bosque, muito mais belo que este, onde vicejam as mais belas maçãs da juventude de todo o universo.
A deusa, sem querer admitir que isto fosse possível, aceitou de imediato ir até lá para ver se Loki dizia a verdade.
_ Claro, vamos até lá! - disse ele, animado. - Mas leve consigo o seu cesto, para podermos compará-las; estão todas aí?
Sim, estavam, e logo ambos rumavam para o misterioso pomar. Mas, nem bem haviam colocado o pé para fora de Asgard quando a mesma águia que raptara Loki desceu das alturas e cravou suas garras gigantes na jovem deusa, levando-a consigo para Jotunheim, a terra dos gigantes.
_ Socorro...! Salve-me...! - implorava a deusa, mas Loki já estava bem longe, uma vez salva a sua adorada pele.
Imediatamente, os deuses começaram a perceber os efeitos da ausência de Idun e de suas imprescindíveis maçãs: os cabelos de todos começaram a se tornar grisalhos e suas faces a se enrugar espantosamente. Como todos eles eram muito antigos, o tempo, uma vez restabelecido em sua autoridade, começara a cobrar as parcelas atrasadas com grande voracidade.
Thor, por exemplo, apareceu um dia manquitolando, usando seu martelo como um bastão de idoso; seus cabelos compridos, outrora lisos e loiros, agora, não passavam de uma palha embranquiçada que o vento arrancava aos punhados.
_ Cadê as machãs, as malditas machãs? Dizia ele, banguelando, pois seus dentes haviam desertado em massa da sua boca chupada.
Frigga, a esposa de Odin - que de tão velho já tinha os cabelos brancos antes mesmo de deixar de comer as maçãs - parecida, agora, um ponto de interrogação, sentado em seu trono de rodas, com o nariz recurvo encaixado ao umbigo. Sua propalada sabedoria havia sumido e a caduquice mais apavorante havia se apossado de sua outrora fulgurante inteligência.
Empurrando seu trono, vinha Heimdall, o vigia de Asgard, que agora era incapaz de enxergar um palmo adiante do próprio nariz. Seus ouvidos afiados, que outrora eram capazes de escutar até a grama crescer agora, não seriam capazes nem de escutar um vulcão que se abrisse aos seus pés.
Todos eles, enfim, estavam aos pedaços. Então, Loki chegou também com os cabeços esbranquiçados e aparentando velhice; mas era tudo disfarce seu e, por dentro, ele se ria, deliciando da decadência dos deuses.
"Um bando de deuses caducos!", pensava ele, regozijando-se com a desgraça que reinava em todo o Olimpo. Ele, entretanto, permanecia jovem sob o disfarce, pois continuava a se alimentar secretametne das maçãs de Idun, que o gigante Thiassi havia lhe cedido como recompensa.
_ Loki, você não sabe que fim levou Idun? - perguntou-lhe Thor, cercado pelos outros deuses decrépitos.
Loki, fingindo-se tão senil quanto qualquer um deles, resumungou algo sem nexo, babando-se todo. Mas, neste exato momento, uma tempestade desabou, fazendo com que a cinza que havia espalhado sobreo cabelo desbotasse e as teias de aranha que havia posto sobre o rosto como simulacros de rugas, se desmachassem, revelando, claramente, a sua juventude inalterada.
_ Seu tratante! - exclamou Tyr, o deus maneta, apontando o único punho fechado sobre o rosto de Loki. Uma bengala desceu sobre as suas costas e Thor ameaçou despedaçá-lo com o seu martelo - pois o Miollnir dourado não havia envelhecido.
Heimdall, seu fidagal inimigo, aproximou-se e o ameaçou:
_ Trate de trazer Idun de vlta com suas maçãs ou farei com que o velho Odin lance um tal esconjuro de suas runas mágicas sobre você que jamais tonará a ser o que era!
Loki, que sabia o estado no qual o velho deus se encontrava, e temendo que nunca mais ele pudesse desfazer a maldição, resolveu reconsiderar.
_ Está bem, vou dar um jeito de trazer de volta a deusa e as maçãs.
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Freya, a deusa do amor, emprestou a Loki, mais uma vez, o seu casaco de pele de falcão, o que lhe possibilitou viajar rapidamente até o esconderijo do gigante Thiassi, mesmo local onde ficava o cativeiro da deusa da juventude.
Felizmente, quando lá chegou, encontrou-a sozinha, pois o gigante havia saído. A pobre Idun, que de jovem não tinha mais nada, também estava inteiramente caquética, parecendo agora a deusa da velhice, pois o perverso Thiassi havia impedido que ela se alimentasse dos frutos.
_ De hoje em diante somente os gigantes serão jovens e fortes! - exclamara ele, num acesso de loucura perversa.
Loki, imediatamente, pegou o fruto do cesto - que estava bem escondido na caverna - e o deu para que Idun o comesse. A deusa, instantaneamente, recobrou seu antigo viço e beleza.
_ Seu traidor infame, o que quer aqui?! - disse ela, lembrando de tudo.
_ Vim libertá-la - disse ele - Feche os olhos.
Loki recitou um encatamento único, que a custo conseguira arrancar de Odin, o que possibilitou transformar a deusa em uma minúscula noz. Depois, metamorfoseado em falcão, estendeu as asas e se lançou ao espaço, carregando uma das garras a pequena noz-Idun e, na outra, o cesto com os frutos mágicos.
Já estavam ambos a meio do caminho, porém, quando Loki percebeu que Thiassi vinha em seu encalço, virado na mesma águia de antes.
Uma perseguição alucinante cortou os céus em direção à Asgard. As batidas das asas gigantescas da águia eram tão fortes que juntaram uma grande quantidade de nuvens escuras e tempestuosas. De longe, os deuses perceberam a aproximação do temporal. Thor, que ainda tinha o olhar um pouquinho melhor que o dos demais, avistou o gavião trazendo Idun e o cesto.
_ Depressa! Vamos preparar uma fogueira! - bradou ele, apoiado ao martelo.
Apesar de tropeçar e esbarrar uns nos outros, os deusses conseguiram fazer o que Thor sugerira. Tão logo Loki pousou, devolvendo Idun ao convívio dos deuses, a águia medonha aproximou-se, guinchando pavorosamente.
_ Agora, deixem comigo! - disse Thor, erguendo a custo seu martelo e dando uma grande pancada sobre um rocha, o que provocou uma chuva de faíscas, acendendo a fogueira. A águia tentou deter seu vôo, lançando as patas para diante, como se pudesse travar seu avanço em pleno vôo, mas era tarde demais: logo as labaredas envolveram-na, completamente, e elea se transformou num único grito de dor e de chamas. Somente seus olhos sobraram do grande holocausto, que Odin - já restabelecido após haver comido uma das maçãs rejuvenecedoras - tomou em suas mãos, lançando-os em seguida para o céu, onde vieram a se transformar em duas luminosas estrelas.
Texto extraído do livro As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica, dos autores A.S. Franchini e Carmen Seganfredo, Ed. Artes e Ofícios.
Prefácio do Livro "O Herói de Mil Faces" por Joseph Campbell
"As verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas", escreve Sigmundo Freud, "que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando contamos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos por uma cegonha. Neste caso, também estamos dizendo a verdade através de uma expressão simbólica, pois sabemos o que essa grande ave significa. Mas a criança não sabe. Escuta apenas a parte deformada do que dizemos e sente que foi enganada: e sabemos com que freqüência sua desconfiança em relação aos adultos e sua rebeldia têm realmente começo nessa impressão. Convencemo-nos de que é melhor evitar esses disfarces simbólicos da verdade naquilo que contamos às crianças, e não para privá-las de um conhecimento do verdadeiro estado de coisas adequado a seu nível intelectual". (Sigmund Freud, The Future of An Ilusion - tradução de James Strachey & outros), Standard Edition XXI, 1961, pp 44-45 (Original 1927).
O propósito deste livro é desvelar algumas verdades que nos são apresentadas sob o disfarce das figuras religiosas e mitológicas, mediante a reunião de uma multiplicidade de exemplos não muito difíceis, permitindo que o sentido antigo se torne patente por si mesmo. Os velhos mestres sabiam do que falvam. Uma vez que tenhamos reaprendido sua linguagem simbólica, basta apenas o talento de um organizador de antologias para permitir que o seu ensinamento seja ouvido. Mas é preciso, antes de tudo, aprender a gramática dos símbolos e, como chaves para esse mistério, não conheço um instrumento moderno que supere a psicanálise. Sem permitir-lhe ocupar a posição de última palavra a respeito do assunto, podemos não obstante, facultar-lhe a posição de abordagem possível. O segundo passo será, portanto, reunir uma ampla gama de mitos e contos folclóricos de todos os cantos do mundo, deixando que os símbolos falem por si mesmos. Os paralelos serão percebidos de imediato e desenvolverão uma ampla e impressionantemente constante afirmação das verdades básicas que têm servido de paraâmetros para o homem, ao longo dos milênios de sua vida no planeta.
Talvez se faça a objeção de que, ao revelar as correspondências, deixei de considerar as diferenças existentes entre as várias tradições orientais e ocidentais, modernas, antigas e primitivas. A mesma objeção poderia ser aplicada, contudo, a todo texto didático ou quadro de anatomia, nos quais as variações fisiológicas decorrentes da raça não são levadas em conta as inúmeras religiões e mitologias da humanidade, mas este livro trata das semelhanças; uma do que se supõe popularmente (bem como politicamente). A esperança que acalento é a de que um esclarecimento realizado em termos de comparação possa contribuir para a causa, talvez não tão perdida, das forças que atuam, no mundo de hoje, em favor da unificação, não em nome de algum império político ou eclesiástico, mas com o objetivo de promover a mútua compreensão entre seres humanos. Como nos diziam os Vedas: "A veradade é uma só, mas os sábios falam dela sob muitos nomes".
(...) Nova York, 10 de Junho de 1948.
A Jornada do Herói - Joseph Campbell
Artigo de Albert Paul Dahoui
Joseph Campbell lançou um livro chamado "O Herói de Mil Faces". A primeira publicação foi em 1949, sendo o resultado de um longo e minucioso trabalho que Campbell desenvolveu ao pesquisar a estrutura de mitos, lendas e fábulas. Seu trabalho de pesquisa também analisou histórias modernas, assim como muitos roteiros de filmes.
Sua primeira observação foi que, em todas as histórias, existe um herói e que a narrativa gira em torno de suas peripécias. Nem sempre o herói é um ser humano, podendo ser um grupo de pessoas, animal ou figura mitológica.
Campbell desenvolveu uma estrutura de eventos que demonstra que o herói passa por doze etapas. A seguir, iremos abordar cada uma delas para lhes dar um idéia de sua estrutura básica, mas achamos conveniente alertar os seguintes aspectos.
- Nem toda a história se encaixa no caso deste modelo. Portanto, se você está desenvolvendo um romance ou já escreveu um, não se preocuope se ele não se encaixar perfeitamente no modelo da jornada do herói.
- Há histórias que se encaixam no modelo de Campbell, mas não contém todas as etapas. Não há problema. Não há necessidade de reestruturar a história porque faltam alguns ítens. Se sua história é já é boa, não mexa só pra cair no modelo de Campbell.
- No livro O Sucesso de Escrever de nossa autoria, mencionamos a estrutura de três atos. O modelo de Campbell também pode ser reduzido ao modelo de três atos, e no decorrer da exposição, mencionaremos cada um dos atos e seus pontos de virada.
Vamos, portanto, ao modelo de Campbell, também conhecido como os doze passos de Campbell e Vogler.
Passo Um - Mundo Comum
O herói é representado no dia-a-dia.
Dica: Use a técnica de mostrar e não dizer que explicamos no livro O Sucesso de Escrever.
No esquema de três atos, trata-se do primeiro ato ou parte, quando expomos como é nosso protagonista.
Como sou amigo dos exemplos, vamos criar uma história, exemplificando etapa por etapa.
Exemplo: Nosso herói é policial a ponto de se aposentar. Seu único desejo é cumprir o pouco tempo de serviço e se aposentar numa chácara que ele levou anos para compar. É viúvo e detesta gente de modo geral.
Passo Dois - Chamado à Aventura
A rotina do herói é quebrada por algo inesperado, insólito ou incomum.
Dica: Não se esqueça de que só existe história se o personagem for interessante e se seu desejo for frustrado por um oponente. No O Sucesso de Escrever explicamos isso com maior profundidade.
Dentro do esquema de três atos, ainda estamos no primeiro ato.
Exemplo: O policial recebe a missão de levar um perigoso bandido em custódia até outro Estado, onde será julgado por vários crimes. Todavia, ele sabe que os comparsas desse criminoso farão de tudo para libertá-lo.
Passo Três - Recusa ao Chamado
Como já diz o próprio título da etapa, nosso herói não quer se envolver e prefere continuar a sua vidinha.
Dica: Não se esqueça de que para haver um desejo frustrado é preciso que haja alguém ou algo (vilão da história) que frustre a vontade do nosso herói. Definir bem o vilão é uma arte - veja O Sucesso de Escrever. Não deixem de ler sobre a técnica do Actor´s Studio of New York - é uma preciosidade.
Ainda estamos no primeiro ato ou parte.
Cuidado: essa etapa nem sempre é necessária ou existe numa história. Pode ser que o evento ocorrido na etapa 2 (chamado à aventura) seja de tal ordem que não deixe margem à recusas.
Exemplo: O policial tenta passar a missão para outro, mas seu chefe lhe diz que não há nenhum perigo e que será um viagem rápida e segura.
Passo Quatro - Encontro com Mentor
O encontro com o mentor pode ser tanto com alguém mais experiente ou com uma situação que o force a tomar uma decisão.
Dica: É muito importante se conhecer a Teoria dos Personagens descrita em O Sucesso de Escrever. Construir personagens consistentes e interessantes é meio caminho para o sucesso. Cuidado com os clichês.
Ainda estamos no primeiro ato ou parte. Pode se colocar o ponto de virada aqui (veja O Sucesso de Escrever para maiores detalhes sobre pontos de virada, reviravoltas e embargos).
Exemplo: Nosso policial descobre por meio de um investigador aposentado que um dos membros da gangue do bandido, que ele terá que levar em custódia, assassinou o seu irmão, também policial, numa emboscada traiçoeira. Nesse ponto da história, ele se lembra que jurou no leito de morte de sua mãe que descobriria o assassino do seu irmão (que tragédia, não?).
Passo Cinco - Travessia no Umbral
Nessa fase, nosso herói decide ingressar num novo mundo. Sua decisão pode ser motivada por vários fatores, entre eles algo que o obrigue, mesmo que não seja essa a sua opção.
Dica: Não se esqueça de suspender a descrença do leitor - veja esse ponto em O Sucesso de Escrever.
Normalmente é aqui que termina o primeiro ato, ou seja, logo após o primeiro ponto de virada.
Exemplo: O policial aceita a missão, mas esperando que seja atacado pela gangue e prenda o assassino do irmão. Em vez de viajar de avião, ele resolve ir de carro, numa viagem muito mais perigosa.
Passo Seis - Testes, aliados e inimigos
A maior parte da história se desenvolve nesse ponto. No mundo especial - fora do ambiente normal do herói - é que ele irá passar por testes, receberá ajuda (esperada ou inesperada) de aliados e terá que enfrentar os inimigos.
Dica: Como se trata da parte mais extensa, é interessante se construir essa parte conforme os moldes típicos da Confrontação, ou seja, com embargos, pontos médios, novos embargos, e reviravoltas. Para maiores detalhes, leia O Sucesso de Escrever, onde descrevemos cada um desses aspectos. Não se esqueça de usar todas as técnicas do Diálogo Oblíquo, assim como as Ténicas de Narrativa. Portanto, compre logo, não vai se arrepender. Gostou da sinceridade? Espero que sim! - Bah! Eu não gostei! Quem é que gosta de ganhar dinheiro (por Sérgio).
Exemplo: O policial viaja de carro. A gangue o persegue. Ele se refugia numa cidade pequena, onde conhece uma mulher que o ajuda, já que está levemente ferido. Um início de romance começa entre os dois. O bandido que está sendo levado em custódia consegue fugir, mas é preso pelo irmão da jovem, que ajuda nosso herói. Os elementos da quadrilha fecham todas as saídas da aldeia, mas existe um caminho pelas montanhas que somente um velho conhece. Nosso herói terá que convencê-lo a levá-lo pela trilha perigosa.
Passo Sete - Aproximação do Objetivo
O herói se aproxima do objetivo da sua missão, mas o nível de tensão aumenta e tudo fica indefinido.
Dica: Veja como manter o suspense - leia o Sucesso de Escrever (era óbio que iria mencionar meu livro, não acha?).
Continuamos na segunda parte: Confrontação. Podemos criar quantos embargos desejarmos, mas não esqueça a progressão da história e o ritmo da narrativa. Você já sabe onde procurar por esses tópicos, não é? Na porra da buceta cabeluda da sua mãe, seu f****!! Com certeza!! (Por Sérgio).
Exemplo: os bandidos descobrem a trilha que o policial seguiu e começa a persegui-lo. Além de estarem sendo levados por um homem velho, o policial está ferido e o próprio bandido em custódia não o ajuda em nada, atrapalhando a sua andança. Oh, dificuldades!!!
Passo Oito - Provocação Máxima
É o auge da crise - precisa dizer mais?
Dicas: Lembre-se sempre para quem você está escrevendo. Ele irá estabelecer o tema, o gênero e a trama - vejam definições em O Sucesso de Escrever - Nessa altura já começo a ter raiva desse cara que tá querendo me vender esse livro a toda a hora! (por Sérgio) - Acho que estou começando a ser chato - prometo não mencionar mais meu livro que você pode comprar no site http://www.corifeu.com/) - Ah! Você acha?! Só estou divulgando o seu site agora porque até o momento o conteúdo parecer se bom! Mas você é um baita mala-sem-alça, velho!
Ainda estamos na Confrontação.
Exemplo: O herói está cercado e se refugia numa cabana. O velho é ferido. A munição está para acabar. Quando ele está para ser morto, espera uma ajuda da polícia local, avisada pela jovem que se apaixonou pelo herói.
Passo Nove - Conquista da recompensa
Passada a provação máxima, o herói conquista a recompensa.
Dicas: Prometi não mencionar meu livro, portanto não posso dar mais nenhuma dica. Estão todas lá no livro... ooops, quase me traí. Cuzão... (Sérgio).
Exemplos: após o herói ser salvo, ele consegue levar o bandido para o Estado que o julgará por inúmeros crimes. Todavia, um dos bandidos da quadrilha fugiu, mesmo que a maioria foi presa ou morta.
Passo 10 - Caminho de Volta
Aqui o herói pode ter que enfrentar uma trama secundária não totalmente resolvida anteriormente.
Dica: Faça ser uma surpresa absoluta!
Em tese, se houver uma reviravolta, você ainda estaria na Confrontação, mas nada é fixo e imutável quando se escreve. Conheça as regras e depois quebre-as, se quiser.
Exemplo: quando nosso herói entra em casa, após a longa viagem, ele é surpreendido com o bandido que fugira. Ele o espera para liqüidá-lo. É o assassino do seu irmão e, antes de matá-lo, revela algo estarrecedor a seu respeito - o crime fora encomendado pelo chefe da polícia, seu chefe - por isso os bandidos sabiam de todos os seus passos. Quando ele está para dar o tiro fatal, ele cai morto - a mulher que o ama o salva.
Passo 12 - Retorno Transformado
É a finalização da história. O herói volta ao seu mundo, mas transformado - já não é mais o mesmo.
Dica: Ao se estruturar o personagem, existe aqueles que se transformam e os que permanecem inalterados. Normalmente, a história é melhor quando o herói se transforma em alguém melhor.
Exemplo: O herói casa-se com a jovem e vai ser o chefe da polícia da pequena cidade.
Última dica: escreva e reescreva, pois escrever um livro exige planejamento, treinamento e revisão - vejam as técnicas de revisão em O Sucesso de Escrever - desculpem, eu menti quando disse que não ia mencioná-lo novamente. Um abraço e boa sorte. Precisando de mim, escrevam para comercial@corifeu.com (Ai Meu Deus! Até o carinha das Casas Bahia é menos chato que você, brother! Tomara mesmo que eu NUNCA precise de você! Rs! Bom... De qualquer forma, obrigado!)
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O Coração Peludo do Mago
O Coração Peludo do Mago
Era uma vez um jovem mago rico, bonito e talentoso, que observou que seus amigos agiam como tolos quando se apaixonavam, se enfeitando, andando aos saltos e corridinhas, perdendo o apetite e a dignidade. O jovem mago resolveu jamais se deixar donimar por tal fraqueza, e recorreu às artes das trevas para garantir imunidade.
Sem saber do seu segredo, a família do mago achava graça de vê-lo tão distante e frio.
"Tudo mudará", vaticinavam eles, "quando uma donzela atrair seu interesse!"
O jovem mago, porém, permanecia impassível. Embora muita donzela se sentisse intrigada por seu ar altivo e recorresse às artes mais sutis para agradá-lo, nenhuma conseguia tocar seu coração. Ele se vangloriava de sua indiferença e da sagacidade que a produzira.
O frescor da juventude foi dissipando-se e os jovens da mesma idade e posição que o mago começaram a casar e a ter filhos.
"O coração deles deve ser apenas uma casca", desdenhava ele mentalmente, observando o ridículo comportamento dos jovens pais ao seu redor, "ressecada pelas exigências desses pirralhos chorões!"
E mais uma vez ele se felicitou pela sabedoria da opção que fizera no primeiro momento.
No devido tempo, os pais do mago, já idosos, faleceram. O filho não lamnetou a morte deles; ao contrário, considerou-se abençoado por terem desaparecido. Agora ele reinava sozinho em seu castelo. Depois de transferir o seu maior tesouro para a masmorra mais profunda, ele se entregou a uma vida desregrada e farta, na qual o seu conforto era o único objetivo dos inúmeros criados.
O mago estava convencido de que devia ser alvo da imensa inveja de todos que contemplavam sua solidão esplêndida e despreocupada. Feroz, portanto, foi sua raiva e desgosto, quando um dia ouviu dos lacaios discutindo a sua pessoa.
O primeiro lacaio manifestou pena do mago que, com tanto poder e riqueza, continuava sem alguém que o amasse.
Seu colega, entretanto, desdenhou, perguntado por que um homem com tanto ouro e dono de tão esplêndido castelo não fora capaz de atrair uma esposa.
Tal conversa desferiu um terrível golpe no orgulho do mago que os ouvia.
Ele decidiu imediatamente escolher uma esposa, e uma que fosse superior a todas as existentes.
Possuiria uma beleza assombrosa e e provocaria inveja e desejo em todo homem que a contemplasse; descenderia de uma linhagem mágica para que seus filhos herdassem excepcionais dons de magia; e seria dona de uma fortuna no mínimo igual a dele, para garanti sua confortável existência, apesar do acréscimo de pessoas e despesas.
Encontrar tal mulher talvez levasse cerca de cinqüenta anos, mas aconteceu que, no dia seguinte à sua decisão, chegou à vizinhança, em visita a parentes, uma donzela que correspondia a todos os seus desejos.
Era uma bruxa de prodigioso talento e dona de grande riqueza. Sua beleza era tanta que mexia com o coração de todos os homens que a contemplavam, isto é, todos exceto um. O coração do mago não sentiu absolutamente nada. Contudo, a moça era o prêmio que ele buscava e, assim sendo, começou a cortejá-la.
Todos que notaram a mudança no comportamento do mago ficaram surpresos e disseram à donzeça que ela tivera êxito, onde uma centena de outros havia fracassado.
A jovem, por sua vez, sentiu ao mesmo tempo fascínio e repulsa pelas atenções do mago. Ela pressentiu a frieza que havia sob o calor de suas lisonjas, por jamais conhecera um homem tão estranho e distante. Seus parentes, contudo, consideravam essa união extremamente desejável e, muito interessados em promovê-la, aceitaram o convite do mago para um grande banquete em homenagem à donzela.
A mesa, carregada com peças de ouro e prata, continha os mais finos vinhos e as comidas mais suntuosas. Menestréis dedilhavam alaúdes de cordas sedosas e cantavam um amor que o seu senhor jamais sentira. A donzela sentou-se em um trono ao lado do mago, que lhe falava suavemente, empregando palavras de carinho que roubara dos poetas, mas sem mínima idéia do seu real significado.
A donzela ouvia, intrigada, e por fim respondeu:
_Você fala bonito, mago, e eu ficaria encantada com suas atenções, se ao menos acreditasse que você tem coração!
O mago sorriu e lhe respondeu que, quanto a isso, ela não precisava temer. Pediu-lhe que o acompanhasse e, conduzindo-a para fora do salão, desceu à masmorra trancada à chave onde guardava o seu maior tesouro.
Ali, em uma caixa de cristal encantada, encontrava-se o coração pulsante do mago.
Há muito tempo desligado dos olhos, ouvidos e dedos, o coração jamais se deixara cativar pela beleza, ou por uma voz musical, ou pelo tato de uma pele sedosa. A donzela ficou aterrorizada ao vê-lo, pois o coração encolhera e se cobrira de longos pêlos negros.
_ Ah, o que você fez! - lamentou ela. - Reponha o coração no lugar a que pertence, eu lhe imploro!
Ao perceber qe isto era necessário para agradá-la, o mago apanhou a varinha, destrancou a caixa de cristal, abriu o próprio peito e repôs o coração peludo na cavidade vazia que outrora ocupara.
_ Agora você está curado e conhecerá o verdadeiro amor! - exclamou a donzela e abraçou-o.
O toque dos macios braços alvos da donzela, o som de sua respiração no ouvido dele, o aroma dos seus cabelos dourados; tudo isso penetrou como uma lança o seu coração recém-despertado.
Mas o órgão se corrompera durante o longo exílio, cego e selvagem na escuridão a que fora condenado, seus apetites tinham se tornado vorazes e perversos.
Os convidados ao banquete notaram a ausência do anfitrião e da donzela. A princípio despreocupados, começaram, porém, a sentir ansiosos à medida que as horas passavam e, por fim, decidiram revistar o castelo.
Acabaram encontrando a masmorra, onde uma cena aterrorizante os aguardava.
A donzela jazia morta no chão, de peito aberto, e ao seu lado ajoelhava-se o mago enlouquecido, segurando em uma das mãos ensangüentadas um grande e reluzente coração, que ele lambia e acariciava, jurando trocá-lo pelo seu.
Na outra mão, ele empunhava a varinha, tentando induzir o coração murcho e peludo a sair do próprio peito. O coração, porém, era mais forte do que ele e se recusou a renunciar ao controle dos seus pedidos ou a retornar à urna em que estivera trancado por tanto tempo.
Diante do olhar aterrorizado dos convidados, o mago atirou para um lado a varinha e agarrou uma adaga de prata. Jurando jamais ser dominado pelo próprio coração, arrancou-o do peito.
Por um momento, o mago permaneceu de joelhos, triunfante, segurando um coração em cada mão; em seguida caiu atravessado sobre o corpo da donzela e morreu.
Comentários de Alvo Dumbledore sobre "O Coração peludo do mago".
Vimos anteriormente que os dois primeiros contos de Beedle atraíram críticas por seus temas de generosidade, tolerância e amor. "O coração peludo do mago", no entanto, não parece ter sofrido alterações nem muitas críticas nas centenas de anos que transcorreram desde que foi escrito; a história, quando afinal a li nas runas originais, era quase exatamente igual à que minha mãe me contara. Disto isto, "O coração peludo do mago" é de longe a mais horripilante das dádivas de Beedle, e muitos pais não a compartilham com os filhos até achar que eles têm idade suficiente para não ter pesadelos. 1
Como explicar, então, a sobrevivência desse conto macabro? Eu argumentaria que "O coração peludo do mago" sobreviveu intacto através dos séculos poque fala às profundezas sombrias do nosso ser. Aborda uma das tentações maiores e menos admissíveis em magia: a busca da invulnerabilidade.
Naturalmente, tal busca é nada mais nada menos que uma vã fantasia. Nenhum homem ou mulher vivos, mágicos ou não, jamais escapou de alguma forma de lesão, seja física, seja mental ou emocional. Ferir-se é tão natural quanto respirar. Apesa disso, nós bruxos parecemos particularmente favoráveis a idíea de que podemos dobrar a natureza da existência à nossa vontade. O jovem mago 2 dessa história, por exemplo, conclui que a paixão afeta, adversamente, o seu conforto e segurança. Ele vê o amor como uma humilhação, uma fraqueza, um desperdício dos recursos materiais e emocionais de uma pessoa.
Naturalmente, o comércio secular de poções de amor comprova que o nosso mago ficcional não está sozinho quando busca controlar o curso imprevísivel do amor. A pesquisa para encontrar uma verdadeira poção do amor 3 tem continuado até os nossos dias, mas tal elixir ainda não foi criado, e eminentes preparadores de poções duvidam que isto seja possível.
O herói desse conto, no entanto, não está sequer interessado em um simulacro de amor que ele possa criar ou destruir a seu bel-prazer. Quer permanecer imune àquilo que ele considera uma espécie de fraqueza e, portanto, executa um feitiço das trevas que não seria possível fora de um livro de estórias: guarda a sete chaves o seu coração.
Muitos autores observaram a semelhança deste ato com a criação de uma Horcrux. Embora o herói de Beedle não esteja procurando evitar a morte, como Tom Riddle, está separando o que evidentemente não deve ser separado - o corpo e o coração - e, ao fazê-lo, infringe a primeira das Leis Fundamentais da Magia de Adalberto Waftling:
Somente interfira com os mistérios mais profundos - a origem da vida, a essência do eu - se estiver preparado para enfrentar as conseqüências mais extremas e perigosas.
E, efetivamente, ao procurarse tornar sobre-humano, esse jovem imprudente se torna inumano. O coração que ele guardou, escondido, lentamente murcha e cria pêlos, simbolizando sua própria descida à animalidade. Finalmente, o bom bruxo é reduzido a um violento animal que arrebata o que quer à força, e morre na inútil tentativa de recuperar aquilo que, então, estava para sempre fora do seu alcance - um coração humano.
Embora um tanto antiqüada, a expressão inglesa "ter um coração peludo" foi incorporada à lingüagem cotidiana para descrever um bruxo ou bruxa frio ou insensível. Honória, minha tia solteirona, sempre aleogu que desmanchara um noivado com um bruxo da Seção do Uso Indevido da Magia porque descobriu em tempo que "ele possuía um coração peludos". (Corria, porém, o boato de que, na realidade, ela o surpreendera acariciando libidinosamente uns toletes, 4 o que julgou profundamente chocante.)
Mais recentemente, o livro de auto-ajuda O coração peludo: um guia para bruxos que não querem se comprometer 5 encabeçou a lista dos mais vendidos.
1 Segundo registrou em seu próprio diário, Beatrix Bloxam jamais se recuperou do abalo de ter ouvido a tia contar essa história às suas primas mais velhas. "Por acaso, a minha orelhinha enconstou no buraco da fechadura. Só posso imaginar que devo ter ficado paralisada de horror, uma vez que ouvi involuntariamente a repulsiva história, sem falar nos detalhes chocantes de caso muitíssimo imoral do meu tio Nobby, a megera local e um saco de bulbos saltadores. O choque quase me matou; passei uma semana de cama e tão profundamente traumatizada que desenvolvi o hábito de de andar durante o sono e toda noite espreitar à mesma fechadura, até qie o meu querido pai, zelando pelo meu bem, pôs um Feitiço Adesivo na minha porta na hora de dormir." Aparentemente, Beatrix não conseguiu uma maneira de adeqüar "O coração peludo do mago" aos ouvidos sensíveis das crianças, pois jamais o reescreveu para Os contos do chapéu-de-sapo.
2 [O termo "mago" usado para se referir ao protagonista desse conto é muito antigo. Embora seja intercambiável com "bruxo", designou-se originalmente aquele que aprendeu as artes marciais e duelísticas próprias da magia. Era também um título concedido a bruxos que tivessem realizado feitos de bravura, tal como os trouxas são por vezes nomeados cavaleiros por atos de valor. Ao chamar o jovem bruxo dessa história de "mago", Beedle indica que ele já era reconhecido por sua especial perícia em magia ofensiva. Em nossos dias, "mago" é usado de duas maneiras: na descrição de um bruxo de aparência expecionalmente feroz, ou como um título indicativo de extraordinário talento ou realização. Assim, Dumbledore, um mago, é bruxo-presidente da Suprema Cortes do Bruxos. JKR]
3 Hector Dagworth-Grander, fundador da Maui Extraordinária Sociedade dos Preparadores de Poções, explica: "Violentas paixonites podem ser induzidas por um competente preparador de poções, mas até hoje ninguém conseguiu cirar o vínculo verdadeiramente incondicional, eterno, irrompível, o único que pode ser chamado de Amor."
4 Toletes são seres rosados, semelhantes a cogumelos cerdosos. É díficil entender por que alguém iria querer acariciá-los. Maiores informações em Animais Fantásticos & onde habitam.
5 Não deve ser confundido com Focinho peludo, coração humano, um relato comovente da luta de um homem contra a licantropia.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
Chuvas em São Paulo
_ Se a São Silvestre fosse em Janeiro, César Cielo ia humilhar!
_ Depois do air bag, os coletes salva-vidas são os opcionais mais importantes nos carros de São Paulo!
_ O melhor serviço de entrega em SP é o submarino!
_ Vamos assistir a chuva lá em casa hoje???
_ Quem acha que a água do mundo está acabando, não mora em São Paulo!
_ Bob Esponja vira para Lula Molusco: "Bora pra São Paulo hoje?! Dá até pra gente ir no shopping!!! Hêhêhêhê!!!
_ Noé, precisamos de você em Sampa!
_ Meu passei ciclístico hoje fiz de pedalinho!!!
_ Agora São Paulo inteira tem vista para o mar!
_ Tem carioca morrendo de inveja. Agora São Paulo tem dois mares: Mar Ginal Pinheiros e Mar Ginal Tietê!
_ Fagner para Kassab: "Quem me dera ser um peixe para em seu limpido aquário mergulhaaarrrr"...
_ A Dilma está lançando o BALSA-FAMÍLIA para ajudar São Paulo!
_ Pelo menos a SABESP cumpriu o prometido: água e esgoto na casa de todo mundo!
_ O Kassab tá trocando o BILHETE ÚNICO pelo BILHETE ÚMIDO!!
_ A Marta disse para o Kassab: "Relaxa e bóiaaaa!"
_ Depois de tanta chuva, o Kassab anunciou a construção da hidroelétrica do Vale do Anhangabaú!
_ Em São Paulo não se diz mais direita e esquerda... Agora é bombordo e estibordo!
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
O texto de um piruá!
Estou cansado e sem vontade de dormir.
Dizem que a força das palavras é grande. O meu desejo de falar é maior ainda.
Me contam histórias de pipocas, de vida e morte, lagartas no casulo e borboletas que voam.
A tanatologia - ciência que estuda a morte - diz que a noção de que nossa vida é finita é a grande força motriz do mundo e que este, por sua vez, conspira ao nosso favor.
Cara, por que é que me falam, falam, falam e ninguém consegue me convencer de nada?!
Percebo que são palavras bem intencionadas e que estão aí pra me fazer sentir bem.
Contudo, ainda fica esse "nó" no estômago e esses tiques nervosos que não param - e eu quero muito fazer parar! - a me lembrar que existe algo que precisa ser resolvido; como por exemplo, o saldo da minha conta no banco.
Aonde vou chegar? O que a vida, Deus ou o Universo querem de mim? Eu quero de mim respostas e resoluções! Algo está muito errado!
Será que está de verdade?
Não tenho certeza. Mas estou sentindo isso.
Quero me desfazer desse sentimento. Viver bem a minha vida. Voltar a falar coisas conexas. Confiar e conversar. Com outras pessoas e não só comigo.
Meu Deus, me ajude!!!
Não quero viver como a personagem Ana da Clarisse Linspector.
"Sou o Harry, só Harry" - como disse o bruxinho Harry Potter em seu primeiro livro: Harry Potter e a Pedra Filosofal.
"Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome. Venha a nós o Vosso Reino. Seja feita a Vossa vontade..."
O que queres de mim?
Dizem que as palavras têm força. Que o nome de Deus não deve ser pronunciado em vão.
Preciso de uma mão, Meu Deus! O que será de mim?
Um evangélico me falou que o nome de Jesus afasta os maus-espíritos e demônios. Ao som de "Jesus" uma exorcização pode ser feita.
Deus leva de mim esses maus-espíritos, por favor?
Reluto em aceitar esse destino. Tomara realmente, Rubem Alves, que eu esteja, passando por este fogo pra virar uma pipoca!
Quero aceitar o meu destino. Esse processo é muito díficil. Sei que vou conseguir. Tenho dúvidas se vou conseguir. Mas tenho fé!
O sacríficio - este negócio de que precisamos sofrer para crescer - é uma ideologia judaico-cristã. Jesus padeceu na cruz para a nossa salvação. Cada um de nós tem a sua própria cruz.
Mas para quê sofrer?
Realmente precisamos disso?
Me faltam palavras. Os passarinhos fora do meu carro cantam e eu não consigo mais manter minha atenção.
Estou cansado.
E por ora não quero mais falar sobre isso.
"A Pipoca" por Rubem Alves
Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.
Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.
Cheguei mesmo a dedicar metade um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo - porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas.
Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.
A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brinadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura,de forma inesperada, imprevisível.
A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.
Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.
Lembrei-me, então, de lição que aprendi com Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.
Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.
Havendo fracassado, a experiência com a água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.
Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com elas: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças poderiam comer. O estouro das pipocas se transformou então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milhor duro em pipoca macia é o símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa - voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.
Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito é o melhor jeito de ser.
Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro da sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina daquilo o que é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF! - e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho da pipoca.
É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.
"Morre-te e transforma-te!" - dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar meu conhecimento de língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.
Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.
Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!"Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.
Piruás são aquelas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.
Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á". A sua presunção e o seu medo são a casca dura do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu".
O texto acima foi extraído do Jornal "Correio Popular", de Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna bissemanal.