Odin e Loki estavam passeando, certa feita, por uma inóspita região. O primeiro adorava vagar por toda a parte, muitas vezes, recorrendo ao disfarce de andarilho, e, se devia a algo o fato de ser considerado o mais sábio dos deuses, era justamente, à sua inesgotável curiosidade.
- A curiosidade é o que diferencia o homem superior do medíocre - dizia ele a Loki, tentando instruí-lo. - Na verdade, há apenas duas classes dos homens: os despertos e os adormecidos; os primeiros são aqueles que já acordaram do sono bruto da indiferença, no qual os outros ainda estão miseravelmente imersos. Um sono imbecilizante, que os faz crer que a vida se resume à meia dúzia de funções orgânicas, exceto a mais nobre: a de usar seus próprios cérebros para criar algo de belo, que os torne felizes como um deus. E isto - arrematou Odin - somente alguém dotado de curiosidade pode fazer, ou seja, alguém desperto.
Loki, que ainda estava na classe intermediária dos sonâmbulos, começou a sentir um sono que ameaçava transportá-lo de volta ao reino dos adormecidos. Mas foi salvo pela fome - a madrasta comum de todos -, que o obrigou a interromper a prédica de Odin.
- Tudo isso é muito bonito, mas estou com uma fome dos diabos - disse ele que já estava tomando uma coloração esverdeada.
- Muito bem, vamos comer, então - disse o deus, largando no chão o alforje.
Mas esta expressão na boca de Odin era um mero eufemismo, pois seu único alimento era o hidromel, a bebida sagrada dos deuses. Loki, entretanto, que tinha muito pouco de deus, começou a armar uma pequena fogueira. Logo um grande pedaço de carne assava gloriosamente, espalhando pelas redondezas o seu atraente perfume.
Enquanto Loki estava acocorado diante da fogueira, comendo pelo nariz, Odin que estava especialmente inspirado naquele dia, retomara sua lição:
- Diz uma lenda muito antiga, que um dia um jovem encontrou uma caixa velha e, ao abrí-la, viu sair de dentro um gênio poderoso - disse o deus, tomando placidamente seu hidromel. - A criatura, pródiga em em poderes, perguntou-lhe então: "Você tem direito a um único pedido, reles mortal!" Depois de se recuperar do susto, o reles mortal o encarou e disse: "Qualquer um" e o gênio respondeu: "Qualquer um menos a imortalidade!" Então, depois de refletir um pouco o jovem teve uma brilhante idéia: "Já sei!", pensou ele. "Em vez de fazer um pedido que me acrescente algo novo - ou seja, uma nova necessidade - , farei outro que acacabará com quase todas elas!" Voltando o olhar para o gênio, disse-lhe : "Retire já o meu estômago!" Desde então, este jovem felizardo passou a ser o homem mais livre que a terra já conheceu.
Loki, no entanto, não escutou direito a fábula (e, certamente não a teria a aprovado, se a tivesse escutado), ocupado que estava em abanar o fogo, quase apagado por conta de uma ventania inesperada que surgira do nada.
_ Droga! - exlcamou ele, com as bochechas escarlates de tanto assoprar. _ De onde veio a droga deste vento?
Somente então, perceberam que acima das suas cabeças, empoleirada em um alto galho, estava uma imensa águia - na verdade, a maior águia que seus olhos já haviam contemplado. A criatura abanava suas asas, parecendo fazê-lo de propósito.
_ O que pensa que está fazendo, águia idiota?! - gritou Loki, mostrando-lhe o punho.
_ Refrescando-me - disse ela, com uma voz gutural, que nada tinha a ver com o grito estridente da águia.
_ Senhora ave, por que o deboche? - disse Odin, mudando o tom da interpelação.
_ Vocês não querem comer? - disse ela, parando por um instante de abanar seus dois gigantescos leques empenados. - Então, deixem que eu me sirva desta carne saborosa.
Loki, sem ver outro meio de comer aquele dia, acabou por ceder.
_Está bem, mas veja se deixa algo sólido para mim!
_ Naturalmente!....
_ É algo bastante bom!
_ Naturalmente, naturalmente!...
O fogo ardeu outra vez e, dali a alguns instantes, a águia descia de seu poleiro para se refestelar.
_ Hummmmmm! Que delícia de carne! - dizia a águia, engolindo os pedaços aos bocados. _ Meus parabéns, senhor assador...!
Sem dar ouvidos, entretanto, às queixas do esfomeado Loki, a águia devorou tudo, deixando no espetos apenas os ossos do boi.
_ Maldita tratante! - exclamou Loki. - Veja só o que me deixou!
_ Não queria algo bastante sólido? - disse a águia, dando risada e agitando as asas num acesso de hilaridade.
Mas Loki não achou graça nenhuma na piada e, por isto, agarrou um galho fino e comprido que viu caído ao chão e começou a vergastar o lombo da águia.
Contudo, no primeiro golpe, vendo-se maltratada, ergueu vôo imediatamente. Foi então, que Loki descobriu, alterado, que levantara vôo junto, pois suas mãos haviam grudado no galho, como por mágica.
_ O que é isso?! Socorro! - berrou ele até sumir no céu como um pontinho.
Sem dizer nada, a águia desceu, abruptamente, dando um vôo rasante um pouco acima de uma floresta, de tal modo, que sua presa foi se chocando contra os ásperos galhos e os espinhos das árvores.
_ Ai! ... Ui! - gritava o pobre Loki, esbarrando nas árvores em altíssima velocidade. - Pare com isto, por caridade!...
Mas a águia, surda aos apelos, engendrara um novo suplício, retirando Loki todo ensangüentado da floresta e o levando até as águas salgadas do mar, onde mergulhou-o, sem contudo nunca cessar de voar.
_ Um salzinho ajuda a sarar as feridas! - disse ela, com um grande riso.
Quando o desgraçado saiu de dentro da água, estava mais morto que vivo e, por isto, a águia resolveu abrir o jogo de uma vez:
_ Muito bem, agora preste atenção! - disse ela, subindo às alturas até quase alcançar o próprio sol. - Eu não sou uma águia, coisa nenhuma, mas gigante Thiassi, disfarçado. Se quiser escapar de minhas garras, terá de me fazer uma promessa!
Loki, que já provara dos arranhões da floresta e da água salobra do mar, agora, estava às voltas com um calor sufocante, que o cozia em pleno ar.
_ Está bem, está bem, eu prometo, seja lá o que for!
_ Bela frase...! - disse o gigante alado. - Você fará então o seguinte: trará até mim a bela Idun e suas maravilhosas maçãs mágicas!
Thiassi referia-se à deusa da juventude, de cujo pomar mágico brotava maçãs rejuvenecedoras. Desde que o mundo fora criado que os gigantes e os anões haviam ambicionado provar destes frutos, mas eles eram propriedade exclusiva dos deuses.
_ Enfim, chegou a hora de dividir a imortalidade entre todos! - exclamou Thiassi, lambendo-se todos e se imaginando jovem e esbelto outra vez.
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Loki foi libertado e tratou de procurar imediatamente a bela Idun.
_ Loki, você por aqui? - disse ela, um jovem loira, que tinha o olhar manso e o corpo esbelto das corças.
A deusa estava justamente colhendo as maçãs em seu perfumado pomar. Grandes frutos, vermelhos com grandes rubis, resplendiam dentro de seu cesto dourado. Podia-se imaginar o gosto sumarento de sua polpa amarela e umida na boca, mesmo antes que eles fossem provados.
_ Você já não comeu a sua maçã recentemente? - disse ela, intrigada. - Lembre-se de que a próxima refeição ainda está longe.
- Oh, pouco importa! - disse ele, afetando um ar de desprezo. - Afinal, quem vai querer estas maçãs horrorosas, quando tem ao alcance outas infinitamente mais saborosas e rejuvenecedoras?
_ O que está dizendo? - disse Idun, tornando-se séria.
_ Isto mesmo que você ouviu. - retrucou Loki, enfático. - Descobri um outro bosque, muito mais belo que este, onde vicejam as mais belas maçãs da juventude de todo o universo.
A deusa, sem querer admitir que isto fosse possível, aceitou de imediato ir até lá para ver se Loki dizia a verdade.
_ Claro, vamos até lá! - disse ele, animado. - Mas leve consigo o seu cesto, para podermos compará-las; estão todas aí?
Sim, estavam, e logo ambos rumavam para o misterioso pomar. Mas, nem bem haviam colocado o pé para fora de Asgard quando a mesma águia que raptara Loki desceu das alturas e cravou suas garras gigantes na jovem deusa, levando-a consigo para Jotunheim, a terra dos gigantes.
_ Socorro...! Salve-me...! - implorava a deusa, mas Loki já estava bem longe, uma vez salva a sua adorada pele.
Imediatamente, os deuses começaram a perceber os efeitos da ausência de Idun e de suas imprescindíveis maçãs: os cabelos de todos começaram a se tornar grisalhos e suas faces a se enrugar espantosamente. Como todos eles eram muito antigos, o tempo, uma vez restabelecido em sua autoridade, começara a cobrar as parcelas atrasadas com grande voracidade.
Thor, por exemplo, apareceu um dia manquitolando, usando seu martelo como um bastão de idoso; seus cabelos compridos, outrora lisos e loiros, agora, não passavam de uma palha embranquiçada que o vento arrancava aos punhados.
_ Cadê as machãs, as malditas machãs? Dizia ele, banguelando, pois seus dentes haviam desertado em massa da sua boca chupada.
Frigga, a esposa de Odin - que de tão velho já tinha os cabelos brancos antes mesmo de deixar de comer as maçãs - parecida, agora, um ponto de interrogação, sentado em seu trono de rodas, com o nariz recurvo encaixado ao umbigo. Sua propalada sabedoria havia sumido e a caduquice mais apavorante havia se apossado de sua outrora fulgurante inteligência.
Empurrando seu trono, vinha Heimdall, o vigia de Asgard, que agora era incapaz de enxergar um palmo adiante do próprio nariz. Seus ouvidos afiados, que outrora eram capazes de escutar até a grama crescer agora, não seriam capazes nem de escutar um vulcão que se abrisse aos seus pés.
Todos eles, enfim, estavam aos pedaços. Então, Loki chegou também com os cabeços esbranquiçados e aparentando velhice; mas era tudo disfarce seu e, por dentro, ele se ria, deliciando da decadência dos deuses.
"Um bando de deuses caducos!", pensava ele, regozijando-se com a desgraça que reinava em todo o Olimpo. Ele, entretanto, permanecia jovem sob o disfarce, pois continuava a se alimentar secretametne das maçãs de Idun, que o gigante Thiassi havia lhe cedido como recompensa.
_ Loki, você não sabe que fim levou Idun? - perguntou-lhe Thor, cercado pelos outros deuses decrépitos.
Loki, fingindo-se tão senil quanto qualquer um deles, resumungou algo sem nexo, babando-se todo. Mas, neste exato momento, uma tempestade desabou, fazendo com que a cinza que havia espalhado sobreo cabelo desbotasse e as teias de aranha que havia posto sobre o rosto como simulacros de rugas, se desmachassem, revelando, claramente, a sua juventude inalterada.
_ Seu tratante! - exclamou Tyr, o deus maneta, apontando o único punho fechado sobre o rosto de Loki. Uma bengala desceu sobre as suas costas e Thor ameaçou despedaçá-lo com o seu martelo - pois o Miollnir dourado não havia envelhecido.
Heimdall, seu fidagal inimigo, aproximou-se e o ameaçou:
_ Trate de trazer Idun de vlta com suas maçãs ou farei com que o velho Odin lance um tal esconjuro de suas runas mágicas sobre você que jamais tonará a ser o que era!
Loki, que sabia o estado no qual o velho deus se encontrava, e temendo que nunca mais ele pudesse desfazer a maldição, resolveu reconsiderar.
_ Está bem, vou dar um jeito de trazer de volta a deusa e as maçãs.
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Freya, a deusa do amor, emprestou a Loki, mais uma vez, o seu casaco de pele de falcão, o que lhe possibilitou viajar rapidamente até o esconderijo do gigante Thiassi, mesmo local onde ficava o cativeiro da deusa da juventude.
Felizmente, quando lá chegou, encontrou-a sozinha, pois o gigante havia saído. A pobre Idun, que de jovem não tinha mais nada, também estava inteiramente caquética, parecendo agora a deusa da velhice, pois o perverso Thiassi havia impedido que ela se alimentasse dos frutos.
_ De hoje em diante somente os gigantes serão jovens e fortes! - exclamara ele, num acesso de loucura perversa.
Loki, imediatamente, pegou o fruto do cesto - que estava bem escondido na caverna - e o deu para que Idun o comesse. A deusa, instantaneamente, recobrou seu antigo viço e beleza.
_ Seu traidor infame, o que quer aqui?! - disse ela, lembrando de tudo.
_ Vim libertá-la - disse ele - Feche os olhos.
Loki recitou um encatamento único, que a custo conseguira arrancar de Odin, o que possibilitou transformar a deusa em uma minúscula noz. Depois, metamorfoseado em falcão, estendeu as asas e se lançou ao espaço, carregando uma das garras a pequena noz-Idun e, na outra, o cesto com os frutos mágicos.
Já estavam ambos a meio do caminho, porém, quando Loki percebeu que Thiassi vinha em seu encalço, virado na mesma águia de antes.
Uma perseguição alucinante cortou os céus em direção à Asgard. As batidas das asas gigantescas da águia eram tão fortes que juntaram uma grande quantidade de nuvens escuras e tempestuosas. De longe, os deuses perceberam a aproximação do temporal. Thor, que ainda tinha o olhar um pouquinho melhor que o dos demais, avistou o gavião trazendo Idun e o cesto.
_ Depressa! Vamos preparar uma fogueira! - bradou ele, apoiado ao martelo.
Apesar de tropeçar e esbarrar uns nos outros, os deusses conseguiram fazer o que Thor sugerira. Tão logo Loki pousou, devolvendo Idun ao convívio dos deuses, a águia medonha aproximou-se, guinchando pavorosamente.
_ Agora, deixem comigo! - disse Thor, erguendo a custo seu martelo e dando uma grande pancada sobre um rocha, o que provocou uma chuva de faíscas, acendendo a fogueira. A águia tentou deter seu vôo, lançando as patas para diante, como se pudesse travar seu avanço em pleno vôo, mas era tarde demais: logo as labaredas envolveram-na, completamente, e elea se transformou num único grito de dor e de chamas. Somente seus olhos sobraram do grande holocausto, que Odin - já restabelecido após haver comido uma das maçãs rejuvenecedoras - tomou em suas mãos, lançando-os em seguida para o céu, onde vieram a se transformar em duas luminosas estrelas.
Texto extraído do livro As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica, dos autores A.S. Franchini e Carmen Seganfredo, Ed. Artes e Ofícios.
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